A Prefeitura de São Paulo pretende lançar no próximo ano um modelo de emissão de títulos de investimentos usando como garantia a receita prevista com multas de trânsito, que corresponde a cerca de R$ 1,5 bilhão por ano.
Na prática, o governo municipal estaria contando com a aplicação de multas futuras de trânsito para antecipar a arrecadação. A proposta está em estudos na SPDA (Companhia São Paulo de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos), órgão ligado à secretaria municipal da Fazenda, e deve entrar em vigor até o final do primeiro trimestre do ano que vem, mas antes é preciso criar um projeto de lei para ser aprovado na Câmara dos Vereadores.
“O projeto de lei vai propor a criação de uma empresa pública para viabilizar a operação. Por mês, a prefeitura tem uma arrecadação média de R$ 130 milhões com as multas, mas sobra uma parcela pequena para investimentos maiores. Com a antecipação, a prefeitura terá um potencial maior de investimento. A parcela de amortização, calculamos que deverá ficar entre R$ 7 milhões e R$ 10 milhões por mês”, disse Marcelo Leitão, diretor-presidente da SPDA.
De acordo com a SPDA, em linhas gerais, a prefeitura quer “vender” parte do fluxo de multas futuras, entre R$ 350 milhões e R$ 400 milhões, para investidores que vão receber os valores parcelados em até cinco anos. “A ideia é que a taxa de juros seja pequena. A ser definida num leilão”, disse.
Leitão já sondou o mercado financeiro para avaliar o interesse que o produto teria entre investidores. A aposta da prefeitura é que o projeto é viável. O perfil alvo da prefeitura são os fundos de pensão e fundos de investimentos. “Não é uma operação para perfil de pessoa física. O adequado são investidores qualificados”, disse Leitão. Os juros que serão pagos para os investidores deve sair da desvinculação de até 30% da arrecadação de multas permita às prefeituras.
“Num contexto de pobreza fiscal e alta carência de investimentos em mobilidade urbana, como a atual, é fundamental colocar em prática este tipo de operação”, disse o economista Raul Velloso, ex-secretário de Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento.
Procurada, a CET afirmou que o pagamento de uma multa, entre a identificação da infração (radar ou agente) e o pagamento, é de 4 meses em média.
Arrecadação
Em três anos, a arrecadação municipal com multas deu um salto de 23,5%. Em 2014, foram R$ 899 milhões em multas de trânsito. No ano seguinte, os paulistanos pagaram R$ 964 milhões em infrações. Já em 2016, a prefeitura recebeu aproximadamente um R$ 1 bilhão em multas (valor ainda não consolidado).
De acordo com o especialista em trânsito, Paulo Bacaltchuck, da PB e Associados Engenharia de Tráfego, a arrecadação com multas de trânsito na cidade de São Paulo já chegou em patamar de saturação e não deve crescer mais nos próximos anos. “Em relação à arrecadação a tendência é se estabilizar a não ser que alguma nova tecnologia disruptiva, como por exemplo, a possiblidade de medir velocidade de um ponto ao outro na rede para descobrir se o motorista acelerou entre um radar e outro”, disse o especialista.
Bacaltchuck critica o uso das multas futuras como antecipação da arrecadação. “A prefeitura pretende financiar suas atividades dando como garantia a arrecadação de multas, que sempre é uma renda que está constante e nunca irá terminar. A prefeitura se apossou de uma renda que não é dela. As multas deveriam ser uma renda ocasional a ser revertida para a educação [de trânsito]. Pelo valor arrecadado, deveríamos ter grandes campanhas [de sinalização e educação de trânsito] com efeitos especiais, etc… mas ao invés disso esse dinheiro é usado para bancar o rombo financeiro da prefeitura. Ok, então se é para utilizar esse novo imposto para outros propósitos então que se recapeie as ruas de São Paulo”, disse.
Ao R7, a CET afirma que “tem implantando ações para a segurança das vias para redução de acidentes e conscientização dos motoristas e pedestres”. Cita que a gestão atual já desenvolvou programas como Trânsito Seguro, Marginal Segura, Pedestre Seguro e 100% Pedestre.
A lei 9.503, que regula o Código de Trânsito Brasileiro, reforça a linha de raciocínio do especialista. Em vigor desde setembro de 1977, a lei obrigada que todo o recurso arrecadado com multas de trânsito deve ser usado em cinco áreas: Sinalização, Engenharia de Tráfego, Policiamento, Fiscalização e Educação no Trânsito. Além disso, 5% do valor deve ser transferido para o Funset (Fundo Nacional de Segurança e Educação no Trânsito).
“A proposta da prefeitura é um tipo de debênture tributário, que é um título de crédito emitido por empresas para fazer caixa com promessa de juros e correção monetária. A questão é que o TCU (Tribunal de Contas da União) já manifestou entendimento que isso não é possível. Para ser feito, a primeira coisa a ser definida é se esta operação é um empréstimo ou uma venda de ativo. Se [a venda das multas] for entendida como um empréstimo, tem a barreira da proibição de endividamento da Lei de Responsabilidade Fiscal, por outro lado, se for a venda de um ativo aí tem uma situação possível de administrar sem entrar na questão de responsabilidade fiscal”, disse Caio Bartine, professor de Direito Tributário do Curso CPJUR (Centro Preparatório Jurídico).
Para Emir Khair, especialista em finaças públicas, o plano da prefeitura paulistana pode ser um problema: “Sou contra todas as formas de antecipação de arrecadação. Isso maquia as contas públicas”, diz.
Prefeitura
Por sua vez, a Prefeitura diz que o modelo de emissão de títulos pode garantir um volume maior de recursos a curto prazo para investimento no sistema viário da cidade.
“Se o dinheiro da arrecadação das multas for destinado para este fim, não me parece algo irregular ou ilegal. Se isso for utilizado para que se crie uma indústria da multa é relativo, já que a prefeitura está se baseando em dados dos anos anteriores. Mas, é lógico que, quanto mais a prefeitura arrecadar melhor será para ela, dando, portanto, motivo para a discussão se haverá uma nova indústria da multa”, disse o advogado Olá Maurício Januzzi, presidente da comissão de trânsito da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).
A lei municipal do Fundo de Desenvolvimento de Trânsito (14.488/07) também apresenta restrições para o uso do dinheiro arrecadado com as multas. Em 2016, a Justiça determinou que o prefeito Fernando Haddad (PT) parasse de utilizar os recursos das multas para pagar parte da folga de pagamento da CET.
TCM
O TCM (Tribunal de Contas do Município de São Paulo) fez um levantamento nas contas da prefeitura em 2013 e 2014 e descobriu que parte dos recursos das multas foram utilizados de forma indevida pela gestão Haddad. Na época, a prefeitura rebateu o estudo afirmando que os recursos foram usados na construção e ampliação de terminais de ônibus, que teria como efeito melhorar o trânsito na cidade, e em campanhas de educação de trânsito.
Segundo a assessoria do TCM, a discussão sobre a proposta da prefeitura de emitir títulos lastreados na arrecadação de multas da CET não chegou ao tribunal.
R7