Foto: (Adriano Vizoni/Folhapress)
“Marília Mendonça é muito Brasil, é aquela música brega, sertaneja, romântica e que fala a verdade”, define-se a cantora e compositora Marília Mendonça, de 22 anos.
Com quase três anos de carreira, ela é a artista mais vista no YouTube no Brasil, com cerca de 3,6 bilhões de visualizações só em seu canal desde seu primeiro vídeo, publicado em maio de 2013. Hoje, tem média de 7,1 milhões de visualizações a cada 48 horas.
Dona dos hits “Infiel” e “Eu Sei de Cor”, ela encabeça o feminejo, cena de mulheres que ganhou projeção na historicamente masculina música sertaneja ao tratar de empoderamento feminino.
O movimento é o mais recente capítulo da renovação estratégica do segmento. As letras abordam bebedeira, relacionamentos, traição e amor a partir do ponto de vista feminino.
“Infiel/ Eu quero ver você morar num motel/ Estou te expulsando do meu coração/ Assuma as consequências dessa traição”, canta Marília, que já busca outros horizontes.
Ela tem 3,8 milhões de seguidores no Facebook, 7,3 milhões no Instagram e 1 milhão no Twitter. Atrai também grande público em shows, como os que a Folha viu em Bauru e em Piracicaba (SP).
São quase 25 apresentações por mês, com deslocamentos diários de jatinho alugado. Na estrada, a equipe de 36 pessoas, todos homens, faz o isolamento. Entrevistas são desmarcadas e jornalistas, expulsos de hotéis para evitar aproximações inesperadas. “Ela não tá num dia bom hoje. Vocês, mulheres, sabem como ficam nesses dias, né?”, justifica o produtor Henrique Ribeiro, 29. Horas depois, a conversa com a Folha foi cancelada.
Três dias depois, reclama da rotina exaustiva. “Não pensava na parte da viagem, da logística, do estresse e da falta de liberdade. Tem que estar sempre sorrindo, não pode ter mau humor ou TPM”.
A outra faceta do sucesso não parece assustar a artista, que estudou o mercado antes de se arriscar nos palcos, ao acompanhar turnês, a vida no backstage e se aproximando de midas do sertanejo.
“RAINHA DA SOFRÊNCIA”
No começo, seu empresário, Wander Oliveira, 48, que cuida da carreira de outros nomes proeminentes do gênero, como Henrique e Juliano e Maiara e Maraisa, sugeriu um regime e repertório de músicas românticas, a exemplo de Paula Fernandes, cantora que despontava no sertanejo.
Mas, confiante, ela rejeitou. “Ele pegava essas faixas românticas, floreadas, dos relacionamentos que deram certo. E eu queria falar da realidade”. Tornou-se a “rainha da sofrência”.
Ela traçou um plano de investir no Norte e no Nordeste, sem ter pisado lá. “Sentia que o público de lá era fiel. A mulher que deixa de comprar uma sandália, de fazer uma escova, para curtir seu show.”
Começou no Nordeste e foi se espalhando para as outras partes do país. “Não consegui descer por um ano. Fiz cerca de 120 shows por lá”, explica. Uma lógica que foge do usual para o mercado sertanejo.
O fenômeno foi observado em levantamento feito pela Folha de dados extraídos do YouTube. Os números mostram que ela começou a estourar no Nordeste em dezembro de 2015, e que, a partir daí, suas músicas começaram a pipocar em outras regiões.
O primeiro DVD que gravou como cantora, em agosto de 2015 em Itaituba (PA), teve público de 15 pessoas, entre as quais compositores e sua própria equipe. Um ano depois, subiu ao palco para a gravação do DVD “Realidade” e reuniu 40 mil pessoas no sambódromo de Manaus.
Em março de 2016, com o primeiro trabalho autoral, “Ao Vivo”, registrou-se o pico inaugural da artista na plataforma.
Em agosto daquele ano, o projeto “Agora que São Elas” (ao lado da dupla Maiara e Maraisa), feito para plataformas de streaming, teve 282 milhões de views nas faixas e cerca de 108 milhões de execuções.
Nos shows, ela segue uma fórmula já conhecida pelo sertanejo universitário, com banda (guitarra, percussão, bateria etc.), cenário e interações constantes com o público.
No palco, ela sinaliza uma busca por se afastar do segmento que a consolidou, aproximando-se de novos gêneros e parcerias. Ela entoa também funks e, em um dos shows que a Folha acompanhou, arriscou “Despacito” em portunhol.
“A música sertaneja antropofagiza as vertentes globais e tensiona para determinadas direções, sem largar de alguns elementos tradicionais”, diz o historiador Gustavo Alonso.
PREPARAÇÃO
Por um ano, enquanto se dedicava à carreira de compositora para terceiros, Marília e parceiros escreviam até duas músicas por dia. Ela emplacou hits nas vozes de nomes como Henrique e Juliano e Cristiano Araújo, morto em 2015. Hoje, planeja criar uma faixa por mês.
A carreira começou lentamente. Sua mãe, Ruth Moreira Dias, a ouviu cantando no banho e comprou faixas de playback para ela cantar em uma igreja evangélica.
Fez duas aulas de violão e desistiu porque “não gostava da teoria”. Sua mãe se separou, Marília deixou a igreja e passou a cantar em outros lugares, em busca de “um trocado para pagar luz e comida”. A igreja exigiu exclusividade, sem sucesso. “Não consigo cobrar de Deus o meu louvor por ele. Minha religião é Deus, a Bíblia.”
A cantora cresceu em Goiânia, onde mora, mas nasceu em Cristianópolis (GO), de cerca de 3.000 habitantes, porque ali vivia um médico de confiança de seu pai. “Foi um parto de risco. O médico falou que ou ia eu ou a minha mãe. Mas aconteceu um milagre.”
“EU SOU O FEMINISMO”
Marília diz encorajar outras mulheres, mas ressalta que o caminho já estava aberto. Faltava “levantar e caminhar”.
Ao seu lado estão outras mulheres, como a cantora Naiara Azevedo e as duplas Maiara e Maraisa e Simone e Simaria. No top 10 das músicas mais tocadas em 2017 no Brasil pela plataforma de streaming Deezer, as únicas mulheres são deste segmento.
“Meu feminismo não é feito de teoria, textos ou protestos. Protesto com minha vida, ao bancar tudo isso e falar que ia ser do jeito que sou e que ia conseguir o que consegui. Eu sou o feminismo”, diz.
Para Maiara, houve uma mudança estrutural no comportamento de empresários, mídia e público. “O feminejo não foi uma ondinha. É indiscutível que ele veio para ficar”. O outro pilar são as bem-sucedidas estratégias no digital.
Segundo Tatiana Cantinho, gerente artística da Som Livre (que representa Marília, Maiara e Maraisa e Naiara Azevedo), um novo produto é lançado simultaneamente na rádio, no YouTube e em streaming. Gravadoras ampliaram o papel de distribuidoras.
Para Cantinho, o mercado de sertanejo virou um “máquina de hits”. “Há uma prateleira infinita. Não precisamos mais esperar o ciclo de um disco completo”, explica sobre os lançamentos de singles com intervalo cada vez menor.
MAIS FEMINEJO
MAIARA E MARAISA
Idade 29 (14 anos de carreira)
Equipe 32 pessoas (3 mulheres: as duas e a personal stylist)
Shows 25 por mês
Álbuns vendidos 172 mil
Streams 79 milhões
Visualizações 591,4 milhões
NAIARA AZEVEDO
Idade 28 (7 anos de carreira)
Equipe 30 pessoas (2 mulheres: ela e a assessora pessoal)
Shows 20 a 25 por mês
Álbuns vendidos 83 mil
Streams 42,1 milhões
Visualizações 354,5 milhões
SIMONE E SIMARIA
Idades 33 e 35 (mais de 20 anos de carreira)
Equipe 38 pessoas (5 mulheres: as duas, duas assessoras pessoais e uma camareira)
Shows 18 por mês
Álbuns vendidos 507 mil
Streams 252,9 milhões
Visualizações 1,04 bilhão
Os dados de álbuns vendidos, streams e visualizações se referem aos lançamentos mais recentes de cada uma —respectivamente, “Ao Vivo em Campo Grande”, “Contraste” e “Live”. Os números de álbuns vendidos incluem CDs, DVDs e álbuns digitais.
Folha de São Paulo