segunda-feira, 9 de junho de 2014

Cervejeiros Artesanais Potiguares promove a Festa da Cerveja Brasileira. Fórmulas inusitadas com macaxeira, jerimum e jabuticaba revelam potencial de uma indústria que movimenta bilhões em todo o mundo

LOIRAS GELADAS
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Conrado Carlos
Editor de Cultura
Sábado (07) eu fui a um evento bacana organizado pela Associação dos Cervejeiros Artesanais Potiguares (Acerva Potiguar). A Festa da Cerveja Brasileira foi montada no Clube de Engenharia, em Petrópolis, com a ideia de reunir produtores, distribuidores, donos de bares e simpatizantes da bebida que séculos antes de Cristo já alegrava egípcios, sumérios e babilônios. Com bandas de rock e samba, sorteios de kits e torneiras abertas para todo lado (por R$ 65,00 seu copo corria por todas elas, até o bom senso dizer basta), a turma queria difundir a cultura que cresce a cada ano e chamar a atenção para a necessidade de diálogo sobre a legislação vigente – um dos entraves para o pleno desenvolvimento de uma indústria com potencial incalculável.
O interesse por cervejas especiais cresceu de forma impressionante, nos últimos anos. Se até 1993 a lei dividia os tipos em claras e escuras, hoje, com 232 microcervejarias registradas no Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (Mapa), informar ao consumidor o que está dentro da garrafa é uma das bandeiras de produtores – sobretudo para diferenciá-las das ‘comerciais’, cuja receita inclui o acréscimo de até 45% de adjuntos cervejeiros, o que traduzido em miúdos significa milho e arroz; saiba você que a cerveja estupidamente gelada vai além de aliviar o calor dos trópicos e envolve a anestesia do palato e das papilas gustativas, áreas responsáveis pelo paladar, para omitir a baixa qualidade dos ingredientes utilizados.
“Estamos vivendo um boom [das cervejas artesanais]. Mas acredito que o ápice chegará em cinco anos, mais ou menos”, diz Rodrigo Camargos, presidente e um dos sócios-fundadores da Acerva Potiguar, ainda em 2010. Ele confirma o despreparo do poder público para legalizar o setor, mas enaltece que produtores têm sido ouvidos. “A legislação é pronta para as grandes cervejarias, pois o que é cobrado para elas de imposto é o mesmo para quem produz 20 litros. Isso dificulta muito” – recentemente ficou acertado que os rótulos devem apresentar a porcentagem de cada ingrediente; os grandes fabricantes aceitaram, com a condição de poderem aumentar a quantidade de ‘cereais não maltados’ (milho e arroz) para 50%.
Mercado que embalou com o crescimento econômico da década passada, a indústria das cervejas especiais emprega mais de 100 mil pessoas nos Estados Unidos e responde por quase 10% do segmento. Como terceiro maior produtor e consumidor de cerveja do mundo, o Brasil tem a natureza a seu favor. São inúmeras possibilidades de combinação com alimentos típicos de um país continental. Aqui em Natal, os treze produtores que participaram da Festa de sábado usaram frutas, tubérculos e temperos abundantes na região Nordeste – tirei a prova ao tomar tipos com jerimum, jabuticaba, abacaxi com hortelã e macaxeira com manjericão. Podem parecer estranhas, mas o leitor deve saber que, neste momento em que escrevo, sinto saudade de todas elas.
A legislação nacional impede, por exemplo, a fabricação de bebidas fermentadas com matérias-primas de origem animal, como leite, mel, ou mesmo frutas in natura (apenas suco ou extrato) e flores. Ao mesmo tempo em que permite que tais bebidas sejam trazidas de fora, desde que respeitem a regulamentação vigente em seu país de origem. Portanto, é nítido o subaproveitamento do forte apelo gastronômico que as cervejas possuem. “Com tanta dificuldade, muita gente que tinha planos de comercializar, desiste antes mesmo de começar a produzir”, diz Rodrigo, representante de uma instituição sem fins lucrativos com 45 filiados e diversos projetos imediatos.
As senhas para a Festa da Cerveja Brasileira esgotaram dias antes. Ávidos por novos aromas e sabores, curiosos lotaram as instalações do Clube de Engenharia. Como bom cervejeiro, Rodrigo comemorou o fato e contou o início da empreitada em vias de virar negócio rentável. “Creio que em um, dois anos, teremos pelo menos uns quatro produtores locais regularizados, vendendo cerveja de forma legal, com rótulo e uma pequena rede de distribuição. Tenho um primo que é mestre cervejeiro da Falke Bier, em Minas Gerais, e que me mostrou, durante uma viagem, a variedade de cheiros e sabores. Pensei: ‘Vou trazer para Natal’. Isso foi em 2009, 2010. Até que abri uma empresa de distribuição chamada Especiarias Gourmet”.
Desde então, Natal ganhou estabelecimentos voltados para a cultura que em diversos países europeus é como uma religião – casos de Bélgica, Alemanha e Holanda. Lojas como a Eufrates Cervejas Especiais e o mais recente bar Estação do Malte, em Ponta Negra, mostram que existe uma parcela expressiva de consumidores dispostos a adentrar em um universo que fomenta inclusive o turismo – cidades gaúchas, catarinenses e paranaenses têm cervejarias que viraram atração para visitantes, enquanto que na Europa os circuitos são tradicionais (algumas agências natalenses possuem pacotes). “Falta o empresário local ver como investimento e treinar profissionais”, complementa Rodrigo.
Ele se refere à escassez de restaurantes com cartas de cerveja. Sem garçons treinados e ainda estimulados pela tradição histórica de ser uma bebida nobre, o vinho domina cardápios de harmonização, mesmo com quase todo alimento combinando com a mistura de água malte e lúpulo – matéria-prima do pão, o trigo entra na fórmula adotada por muito produtor, de acordo com a Reinheitsgebot, Lei de Pureza Alemã criada por Guilherme IV em 1516 para combater produtos com baixa qualidade. Dizem que um dia de cólica, em outro trono, após tomar uma cerveja ‘falsa’ em uma taberna seria a causa do decreto do duque da Baviera.
Burocracia e tributação
Alysson Holanda é dentista. Entre cuspideiras, bombas de vácuo e restaurações, despertou para uma paixão que, atualmente, está prestes a virar empreendimento. “Comecei em 2010 com uma panelinha de 20 litros. Meu pai é mestre cervejeiro e estamos esperando somente ele se aposentar no ano que vem para expandirmos o negócio”. No momento, sua Cervejaria Holanda produz 100 litros por vez, após investimentos em caldeiras e tanques fermentadores. São cinco tipos de cerveja que saem de suas mãos: a Norton (uma lager de baixa fermentação), a Nova Amsterdã (estilo trapista, feita por monges belgas e holandeses, óbvia homenagem à Natal), a Rubia (uma Golden Ale de alta fermentação), a Gabriela (com cravo e canela) e a Rubia Pinapple (com abacaxi e hortelã, a única exibida na Festa da Cerveja Brasileira).
Saiba o leitor que para uma cerveja ser Premium, ela precisa ter, no mínimo, 80% de malte – o que não acontece com 90% das comercializadas pelas grandes cervejarias. Para tanto, o incremento de ingredientes com qualidade comprovada elevaria o preço. “Para você ter uma ideia, eu comprei 60 quilos de malte do Rio Grande do Sul, um dia desses, que custou R$ 550,00. Só de frete eu paguei R$ 270,00”, lamenta Alysson. É o propagado Custo-Brasil que atrapalha mais uma indústria com vasto campo de crescimento. Mas a união entre produtores pode alterar o cenário, como a proposta que as Acervas do RN, da PB e de PE tem de criar um centro de distribuição de ingredientes em Recife. “Uma cerveja especial é de verdade. Mesmo quente, ela continua com o cheiro e o sabor agradável. Para quem experimenta, é um caminho sem volta”.

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