segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Sul-africanos não reconhecem herdeiros políticos de Mandela


<br />
Família posa em frente à sua casa na vila rural de Mvezo, onde Mandela nasceu: acesso à água e outros bens é restrito aos mais abastados<br />
Foto: ANDERS PETTERSSON / NYT
O dia de Adam Bhasikile começa ao amanhecer, sempre da mesma forma: com seus jumentos, ela desce de sua vila no topo de um morro até o fundo do vale, pega água no Rio Mbashe para cozinhar para a família, para a limpeza e o banho. É um interminável ritual que a mãe de Nelson Mandela, que deu à luz o futuro presidente ali, em 1918, certamente também realizava.
Recentemente, Adam passa por algo mais em sua caminhada: um amplo complexo com banheiros de porcelana brilhante, com chuveiros e torneiras que jorram água num estalar de dedos. O complexo inclui uma sala de reuniões, um tribunal tribal e uma residência privada para o chefe da aldeia. E não é qualquer chefe — o homem no comando é Mandla Mandela, neto preferido de Mandela.
Mas o caminhão que abastece os tanques do conjunto de edifícios não para na casa de Adam.
— Essa água não é para nós, é para eles — diz ela, com tom de desaprovação, enquanto caminha até a encosta escarpada com 40 litros de água sobre cada um de seus três jumentos.
Adam não se impressiona com o chefe Mandla, apesar de sua ascendência:
— Ele não é como o avô.
O descontentamento com Mandla espelha a decepção de muitos sul-africanos com as gerações que sucederam os heróis da luta pela libertação em seu país. A morte de Mandela, em muitos aspectos, é o fim da linha para o grupo de líderes que conduziram a batalha contra o apartheid de um combate solitário e aparentemente sem esperança até uma vitória moral e política inevitável, aplaudida por grande parte do mundo. Outros heróis da luta, como Oliver Tambo, Walter e Albertina Sisulu e Joe Slovo, já estão mortos há anos.
Talvez inevitavelmente, as seguintes gerações de líderes se esforçaram para viver de acordo com seu legado. O sucessor de Mandela como presidente, Thabo Mbeki, foi duramente criticado por sua resistência em aceitar os métodos de tratamento e prevenção da Aids, uma postura que pesquisadores concluíram ter sido responsável por aumentar o número de mortes no país em decorrência da doença. O atual presidente da África do Sul, Jacob Zuma, tem estado sob uma chuva de críticas há anos, investigado em casos de corrupção e estupro.
Ascensão controversa ao poder
Líderes mais jovens, como o incendiário Julius Malema, têm atraído seguidores entre os jovens desempregados insatisfeitos, mas suas opiniões radicais e duras críticas aos líderes mais velhos fizeram com que fosse expulso do partido de Mandela, o Congresso Nacional Africano. E filhos de algumas famílias profundamente envolvidas na luta contra o apartheid — Mandela, Tambos e outras — em grande parte se esquivaram da política.
— Em todos os grandes movimentos de libertação, há o problema de produzir grandes líderes para assumir — disse William Gumede, analista da trajetória de Mandela. — Mas, neste caso, foi realmente uma falha na hora de passar o bastão.
Mandela é muitas vezes chamado de o pai da nova África do Sul, e deixa para trás um legado impressionante, mesmo que o futuro da nação permaneça incerto. Mas a história de sua família tem sido marcada por erros, tragédia e negligência — um legado de falhas admitidas por Mandela como marido e pai, em meio à sua batalha contra o apartheid e décadas de prisão.
A ascensão de Mandla foi motivo de orgulho para Nelson Mandela. Mas sua trajetória tem sido cercada de controvérsias, inclusive de ordem pessoal. Ele decidiu destruir as ruínas da cabana em que Mandela nasceu e substituí-los com uma réplica, o que irritou funcionários do Museu Nelson Mandela. Sua ex-mulher o acusou de abusos e traições, num conturbado processo de divórcio.
Mvezo fica na parte mais pobre da África do Sul, Cabo Oriental, que foi a pátria para os negros durante o apartheid. Essas áreas foram negligenciadas, um legado que permanece em suas maltratadas escolas, hospitais, estradas e aldeias. Poucos ali veem Mandla como seguidor dos passos do avô.
— Tenho que dizer a verdade: Madiba uniu as pessoas. Mandla está muito longe desse jeito de fazer as coisas — diz o morador Noluzile Gamakhulu.
A decepção se estende aos herdeiros da luta libertária. Victoria Msiwa, de 84 anos, cujo avô foi professor de Mandela, diz que a geração mais jovem estragou o país, deixando-a estranhamente nostálgica das certezas tranquilas da era do apartheid.
— Quando comparo aquela época em que crescemos com a de hoje, não vejo diferença. As pessoas dizem que somos livres, mas não podemos caminhar à noite.
Seu trator foi roubado há dois anos:
— Veja, temos grades contra assaltantes, aqui nesta área rural. Os analistas podem dizer se isso é melhor. Eu estou velha. Estou cansada.
O Globo

Nenhum comentário: