Um anfíbio. Assim o ex-ministro José Dirceu se definiu em uma entrevista ao falar sobre sua trajetória, a adolescência como office-boy, as múltiplas funções na carreira pública, a militância política e a vida na clandestinidade durante a repressão. O termo pode explicar também como o ex-chefe da Casa Civil, que, segundo amigos e inimigos, aspirava suceder ao então presidente Lula, despencou do céu do Planalto para o inferno da condenação a dez anos e dez meses de prisão.
“Vossa Excelência desperta em mim os instintos mais primitivos”, disse Roberto Jefferson a Dirceu durante o processo de cassação do mandato do petista na Câmara dos Deputados. A denúncia de compra de votos da base aliada feita por Jefferson ganhou contornos que o próprio denunciante não imaginava em 2005. Ministro-chefe da Casa Civil, Dirceu foi acusado de comandar o esquema do mensalão, arrastando consigo a alta cúpula do PT e colocando em risco o segundo mandato do ex-presidente Lula. Jefferson também foi cassado.
Comandante do PT e artífice da eleição de Lula em 2002, o então deputado Dirceu foi alçado a braço-direito do presidente eleito. Todo-poderoso, mandava no PT e no governo, não necessariamente nessa ordem. Um de seus principais aliados, Silvio Pereira, era responsável pela distribuição de cargos do Planalto aos petistas e à base.
O time de Dirceu agia, naquele começo de século, como dono do poder. Em 2005, Jefferson empanou o brilho petista. Denunciou o mensalão, que o PT e Dirceu nunca admitiram existir, mas que rendeu as mais severas condenações a políticos e empresários pelo Supremo Tribunal Federal no país. Foi Silvinho quem mais implicou o ex-ministro no escândalo: apresentou Angela Saragoça, ex-mulher de Dirceu, ao sócio de Marcos Valério e ao Banco Rural, que lhe deram um emprego e a quem ela vendeu seu apartamento. Em depoimento, Angela disse que precisava de dinheiro e que fez o negócio sem conhecimento do ex-marido. Disse que não sabia se tratar de um sócio do publicitário.
Logo depois de ser rifado por Lula do governo e do poder, magoadíssimo, Dirceu abriu o coração para um emissário do governo americano em agosto de 2005: criticou o presidente, que teria sido negligente com o recolhimento de recursos para o PT e que não era um homem de muita iniciativa. Segundo o diplomata, o ex-ministro disse que Delúbio sequer era um “cara” de seu time. Distanciando-se da crise, lembrou a origem do ex-tesoureiro no sindicalismo lulista.
Com a ideia que sempre o persegue de estar no centro, no protagonismo do governo, Dirceu arriscou um palpite de que o próprio Lula talvez não se reelegesse. Disse também que o mensalão foi um “esquema louco e perverso” de caixa dois. Negou a compra de votos. As inconfidências foram registradas em um telegrama diplomático do governo americano, vazado pelo WikiLeaks em 2010.
— Dirceu diz que é vítima do ódio e da inveja da elite porque ele sempre se considerou o centro de tudo. Ele é vítima de sua ambição desmensurada — dispara o economista Paulo de Tarso Venceslau.
Ex-integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), Paulo de Tarso passou cinco anos e meio preso pelo sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969. Elbrick foi trocado pela libertação de 13 presos políticos, entre eles, José Dirceu, um líder do movimento estudantil preso durante o Congresso da UNE em Ibiúna (SP).
Paulo de Tarso foi amigo de Dirceu por muitos anos, juntos participavam de um grupo de esquerda que se aproximou de Lula, no ABC Paulista, pelas mãos de Frei Betto. Fundaram o PT, partido que acabou expulsando Paulo de Tarso, sob o comando de Dirceu, quando o economista fez denúncias contra um compadre de Lula.
— A confiança entre nós era tanta que, quando ele estava clandestino no Brasil (vivendo sob nome falso no Paraná), eu era um dos poucos que tinham contato com ele. Dirceu nunca foi um “trator” de Lula. Ele sempre foi um trator de si mesmo. Seu projeto era ser o sucessor de Lula. Nunca respeitou o Lula e nunca escondeu que, para ele, Lula era um atraso para a esquerda — critica Paulo de Tarso.
Mineiro de Passa Quatro, Dirceu chegou a São Paulo, onde começou o curso de Direito na PUC-SP, em 1965. Com boa aparência, bom de conversa e cheio de ideias de esquerda, logo se destacou naqueles anos de chumbo. Exilado em Cuba depois da libertação dos 13, participou da criação do Molipo (Movimento de Libertação Popular), grupo do qual é um dos poucos sobreviventes da ditadura. Para voltar ao Brasil, fez uma cirurgia plástica, virou Carlos Henrique e foi viver no Paraná, onde se casou e teve o filho Zeca, hoje deputado.
De volta a São Paulo e a seu próprio nome, retomou a vida política: fundou o PT com Lula, foi deputado estadual e federal até chegar à Casa Civil. Sempre buscou os holofotes, mesmo durante o julgamento. Anunciou aos quatro ventos que recorreria a todos os caminhos e buscaria tribunais internacionais para mudar sua sentença.
Sempre fez questão de deixar sua assinatura nos atos do PT, nos congressos, nas reuniões de executiva, nos encontros mais importantes da legenda, nas campanhas eleitorais. Diz que, mesmo que seja preso, vai continuar fazendo política.
— Não se iludam. Vou continuar sendo o Zé Dirceu do PT — disse em entrevista na semana passada, antes do julgamento dos embargos declaratórios.
O Globo
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