Fereshta Kazemi em cena de 'The icy sun' (Foto:
Reprodução/YouTube/Sanayee Film Production)
Um filme afegão retrata pela primeira vez o o estupro de uma mulher na
conservadora sociedade de um país onde a vítima pode ser condenada a 15
anos de prisão por ter cometido um "crime moral".
"The icy sun" ("O sol glacial", em tradução livre), de 25 minutos de
duração, narra a história de uma aspirante a atriz que é estuprada por
um produtor sem escrúpulos em Cabul e conta como depois a jovem deve
ocultar o fato para evitar ser massacrada pela sociedade.
"Interpretei esse papel para dar voz às mulheres sem voz que são
brutalmente estupradas', afirmou à agência EFE por telefone de Los
Angeles a protagonista do filme, Fereshta Kazemi. Embora tenha nascido
em Cabul em 1979, ela passou grande parte de sua vida nos Estados
Unidos.
Kazemi lembrou que é importante conscientizar a sociedade afegã sobre a
gravidade dos abusos sexuais, pois há mulheres que são presas após ter
sofrido esses tipos de ataques.
"Quero que o povo se dê conta de que o estupro está relacionado com a
violência, não com o sexo. O estupro é uma forma de violência contra as
mulheres, um modo de desumanizá-las", disse a atriz.
Um relatório de 2012 da ONG Human Rights Watch constatou que 50% das
mulheres na prisão no Afeganistão são acusadas de "crime moral", de
escapar do lar ou de manter relações sexuais fora do casamento,
denominado "zina".
"Zina" é um crime no país asiático castigado com penas de até 15 anos e
mulheres que foram estupradas ou forçadas a se prostituir foram
condenadas por isso graças a esta lei.
A atriz, conhecedora do código penal afegão, assegurou que durante a
filmagem de algumas cenas temia que a polícia pudesse acossá-la,
sobretudo quando filmava durante a noite, acompanhada da equipe
masculina, em uma movimentada estrada de
Cabul.
"Foi duro e estava muito nervosa ao ver os carros passarem perto de
mim. Me preocupava em ter que explicar para polícia o que fazia a essa
hora em Cabul com esse grupo de homens", explicou Kazemi.
O filme se baseia em uma história real de uma atriz afegã que foi
estuprada e depois assassinada por um produtor, que Kazemi definiu na
trama de ficção como uma "inocente sonhadora" atacada por "um ser
obscuro".
Graças a seu papel no filme, rodado em 2013, Kazemi recebeu o prêmio de
melhor atriz no Festival de Cinema de Direitos Humanos do
Afeganistão, e a produção será apresentada, além disso, em grandes festivais como Cannes e Sundance.
No entanto, nem tudo foi fácil para a equipe de filmagem. O diretor,
Ramin Mohammadi, recebeu asilo político na Dinamarca após abandonar o
Afeganistão em julho, depois de ser ameaçado por vários clérigos
muçulmanos em sua residência de Cabul.
Kazemi, por sua parte, recebeu ameaças de morte e assegurou que deve se
manter escondida durante suas visitas à capital afegã, informar o menor
número possível de pessoas sobre sua localização e se reunir só "com
amigos próximos".
O motivo de tanta indignação não é o estupro em si, mas uma cena na
qual após ser "chocante", com a protagonista aparecendo "nua" – segundo o
padrão afegão – em um banho, embora na realidade só se vê parte de sua
costas e o peito na altura dos ombros.
"Muitos homens me perguntam: 'Por que você fez isso?'. E eu respondo
que me sinto tranquila com essa decisão que tomei e que a única coisa
que eles veem nessa cena é o próprio incômodo e sentimento de vergonha",
comentou a atriz.
Além disso, a atriz lembrou que, durante a gravação da cena, estava
enrolada em uma toalha, que sempre houve outra atriz com ela "para que
fosse testemunha de que se tratava de uma interpretação profissional e
nada mais".
Apesar das ameaças de morte que recebeu e longe de se amedrontrar,
Kazemi planeja retornar a Cabul nos próximos meses para rodar um
documentário, pois assegurou que o Afeganistão lhe proporcionou algo que
há tempo buscava.
"O Afeganistão me tocou o coração porque finalmente pude enfrentar meu
país tête-à-tête com a minha cultura, algo que senti saudades enquanto
crescia como americana nos Estados Unidos", concluiu